A Ti Maria Josefa (Crónica)

Na mesma quelha, perto da casa do padre, paredes meias com a do Ti António Álvaro, viviam inúmeras pessoas, como, aliás, por toda a aldeia, que era estreito o espaço coberto e muitos os filhos que Deus mandava para substituir os levados pelas febres.

A Ti Purificação amassava a farinha, juntava-lhe o fermento e ia acudir à panela da sopa enquanto a massa levedava. Voltava para a fingir, tender e levar ao forno, regressava à cozinha e de novo ao forno para dele tirar, tostados, bolos e trigos, estes com o dobro do peso daqueles e igualmente divididos em quartos fáceis de esnocar à mão. Só pela Páscoa cozia os santoros, pão da mesma massa, em forma de ferradura, folar que os padrinhos davam aos afilhados com a bênção solicitada.

Em frente morava a Ti Josefa, que conheci sempre velha. Essa rumava a Almedilla, aldeia espanhola do lado de lá de Batocas, onde dois comércios viviam da coragem e do sacrifício dos contrabandistas portugueses.

Palmilhava longas léguas para trazer trigo obrado à espanhola, alpercatas, pana, e, por encomenda, tabletes de chocolate da Senhora das Candeias e galletas que haviam de cobrir, sob o pano de linho, o prato junto à garrafa de jeropiga que o padre e o sacristão haviam de provar, pela Páscoa, depois de darem o menino a beijar e recolherem o óbolo.

A Ti Josefa era mulher rija, enxuta, com marreca que os anos acentuaram e pernas lestas capazes de percorrer oito léguas sem afrouxar. Muitas vezes a espoliaram da carga os carabineiros e guardas-fiscais quando a filavam ou ela própria lha abandonava para mais facilmente se escapulir.

Outras vezes teve mais sorte quando alguém se encarregava de atar gestas no carreiro e tropeçavam os carabineiros com a arma, dando tempo a pôr-se a salvo do lado de cá da fronteira se os guardas-fiscais não andavam por perto nem alertados por algum disparo dos espanhóis.

Os tiros raramente atingiam contrabandistas, não tanto por escrúpulo ou compaixão dos guardas mas por instinto de sobrevivência: cada baixa de um contrabandista, sobretudo na zona do Sabugal, era vingada num elemento das forças policiais. Podia sobreviver o que tinha matado, mas marchava, por desforra e à guisa de advertência, outro da nacionalidade respectiva. O autor raramente pagava, era difícil a prova e protegia-o o silêncio geral.

A Ti Josefa aprendeu em menina a arte do contrabando e dela fez vida até que a idade a levou. Foram para aí sete décadas que consumiu entre a Miuzela e Almedilla e, por fim, Fuentes de Oñoro, quando os guardas, de um lado e outro da raia, lhe respeitavam os anos e a carga.

Vinha então pela linha do comboio, circulando entre os carris, vergada ao peso da idade e da mercadoria, saltando para os lados quando o comboio, cujos horários conhecia pelo sol e por intuição, se aproximava.

Um dia, passados já os oitenta anos, lá vinha, como de costume, e não ouviu o apito nem deu conta da aproximação do monstro, mas, muito perto, pressentiu o perigo e logo se amochou enquanto o Rápido desapareceu por cima da Ti Josefa e da sua carga, sem lhe deixar um arranhão ou estragar a mercadoria.

Era rija, a velha. No dia seguinte voltou à faina, que os clientes eram certos e o hábito se tornara mais forte do que a precisão.

Publicada no Jornal do Fundão em 03-11-06

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