A bufaria. Opinião de um leitor


O uso da "bufaria", ou o recurso à delação, seja pública ou anónima, como arma política, foi endémico nos últimos séculos da vida pública em Portugal.

E, para além de endémico foi, sempre que possível, calunioso ou pérfido. Todos os que se lembram dos tempos da ditadura sabem que qualquer opositor ao “Estado Novo” era, no mínimo, um execrável comunista …“ao serviço de inconfessáveis interesses estrangeiros”. Esta era a terminologia do Ministério do Interior, do SNI, da PIDE/DGS, dos Tribunais Plenários, etc.

Hoje, sabemos que muitos dos que contestaram a ditadura pouco mais eram do que cidadãos (muitas vezes jovens) vivendo, na época, a utopia de construir um Portugal livre, justo e mais igualitário. É óbvio que existiam organizações políticas – onde o PCP pontificou – que lutavam pelo derrube do regime salazarista. Mas todos, sem excepção, eram classificados pela mesma bitola e sumariamente “punidos”.

Com essa atitude baseada na mais vil delação perdemos, ou dificultámos, o contributo público de notáveis cientistas portugueses como, p. ex., Bento de Jesus Caraça, Franscisco Pulido Valente, Abel Salazar, Rodrigues Lapa, Aurélio Quintanilha,... (entre muitos outros).

Este clima não é exclusivo de Portugal. Todos nos lembramos dos anos 50 e da “caça às bruxas” protagonizada por McCarthy que antes de desaparecer da cena política americana, completamente desacreditado, ainda teve tempo para acusar Albert Einstein de “actividades anti-americanas”.

Este terrível anátema social não poupou, através dos séculos, o mundo da espiritualidade, nomeadamente, o religioso. A Inquisição é exactamente isso: espiar, caluniar, denunciar… e depois, a fogueira!

Hoje, a delação tem justificações mais subtis. É pretensamente ética. Muitas vezes invoca a legalidade. Nos organismos ou departamentos político-burocráticos os atentos, dedicados e servis delatores fornecem aos chefes ou superiores hierárquicos uma trama de “informações” que, na sua mente pérfida, são lesivas da “legalidade instituída”. Permitem, em nome dessa “legalidade”, e de uma suposta “fidelidade”, que os órgãos dirigentes possam “destruir” um eventual opositor político, um potencial concorrente ou, simplesmente, um cidadão crítico, sarcástico ou jocoso.

Tal prática não se restringe ao combate ao pensamento divergente, à oposição séria e construtiva, às modalidades de expressão, às intencionalidades das preposições. Visa a própria pessoa, enquanto cidadão. Extrapola os limites aceitáveis da luta política para entrar num ambiente da mais abjecta baixeza humana. Parte de um princípio insuportável em democracia: ninguém pode questionar a “legalidade instituída” ou os seus símbolos (dirigentes ou chefes).
O que efectivamente está em jogo é a utilização dos organismos públicos como um meio. Quando estes abusos atingem o âmbito da investigação criminal, ou os órgãos judiciais, tornam-se, tão-somente, instrumentos de descrédito da Justiça e socialmente iníquos.

Levantam a suspeição sobre o uso dos recursos e privilégios, inerentes aos cargos, para saciarem a sofreguidão que o Poder lhes incute e estimula e promoverem danos cívicos sobre "os outros" (adversários políticos, concorrentes, "amigos", colegas, etc.)

Os “bufos” e, cumulativamente, os "ezímios" chefes receptadores das delações, pretendem, na sua mesquinhez democrática, apresentar-se como paladinos da justiça e defensores da ordem e da dignificação da coisa pública. Na verdade, para além da ignomínia, relevam um comportamento servilista em relação às causas públicas e uma intrínseca postura anti-social.

Estamos perante a aristotélica questão dos meios e dos fins, na política. E não podemos, nem devemos, culpar Maquiavel, por estas insensatas diatribes que, hoje, tão danosa e desnecessariamente, atingem as liberdades individuais e a credibilidade democrática, empestando o normal exercício de actividades políticas ou, tão simplesmente, os direitos de cidadania.

a) e-pá Qui Jul 19, 10:08:00 AM

Comentários

Anónimo disse…
Excelente análise sobre o "cidadão" português que não li completamente ontem por falta de tempo.
De facto a servilidade dos chefes e a sua fraca cultura social e humana enaltecem a baixeza dos seus subordinados e da população, nivelando os usos e costumes dum povo sem carácter.
Hoje com os blogs, mesmo se a maioria também é representativa da choraminguice e invejaria geral, conseguimos encontrar pessoas dignas de respeito e de interesse (caso deste blog), o que é raro quando estamos rodeados de "servis e escravos deles próprios" e dos seus fantasmas indigentes.
Anónimo disse…
Belíssima análise do que se passa hoje em muitos locais. Li-o ontem, hoje tornei a fazê-lo com prazer, mas permita-me o destaque:
"...Hoje, a delação tem justificações mais subtis. É pretensamente ética. Muitas vezes invoca a legalidade. Nos organismos ou departamentos político-burocráticos os atentos, dedicados e servis delatores fornecem aos chefes ou superiores hierárquicos uma trama de “informações” que, na sua mente pérfida, são lesivas da “legalidade instituída”. Permitem, em nome dessa “legalidade”, e de uma suposta “fidelidade”, que os órgãos dirigentes possam “destruir” um eventual opositor político, um potencial concorrente ou, simplesmente, um cidadão crítico, sarcástico ou jocoso."
Cumprimentos
Anónimo disse…
"Os eunucos devoram-se a si mesmos
Não mudam de uniforme, são venais
E quando os mais são feitos em torresmos
Defendem os tiranos contra os país

Em tudo são verdugos mais ou menos
No jardim dos harens os principais
E quando os mais são feitos em torresmos
Não matam os tiranos pedem mais

Suportam toda a dor na calmaria
Da olímpica visão dos samurais
Havia um dona a mais na satrapia
Mas foi lançado à cova dos chacais

Em vénias malabares à luz do dia
Lambuzam da saliva os maiorais
E quando os mais são feitos em fatias
Não matam os tiranos pedem mais"
Anónimo disse…
Anónimo:

Podia, e devia, indicar o autor da letra e da música deste belo poema.

José Afonso
Os Eunucos (No Reino da Etiópia)

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