O Velório do Botas (crónica)

Foi em Agosto de 1968 que uma cadeira, no Forte de S. Julião da Barra, aliviou os portugueses. O ditador tinha a censura a defender-lhe a privacidade e a PIDE/DGS a aprisionar os adversários, mas já se debatia com um bravo hematoma que viria a ser saudado como herói.

Que a cadeira, uma simples cadeira corroída pelo caruncho, ousasse, na coragem dos corpos inertes, antecipar o fim do déspota, foi um acto de afoiteza que lhe valeu um lugar na História e ao caruncho a aura de santidade, ainda que a verdade possa ter sido outra e ter a cadeira, graças à censura, fruído os louros devidos a um acidente cerebral.

Soube-se lentamente que Salazar era mortal, dúvida metódica que muitas décadas de medo se tinham encarregado de acentuar, receio que remetia para as confidências da Irmã Lúcia ao cardeal Cerejeira, que o frio ditador fora escolhido pela Providência para governar Portugal, maldade que ameaçou eternizar-se em divina afronta.

No Hospital da Cruz Vermelha reuniam-se conselhos de ministros a fingir para dar ao tirano a ilusão de que ainda dirigia o país, que rezava, a mando dos padres, a implorar a cura. O desejo dos suplicantes aturdia o País urbano que temia a cura que devolvesse o enfermo à governanta, às galinhas que ambos criavam e a S. Bento.

Os boletins médicos descreviam o «homem providencial» como apirético e em risco de cura. Viveram-se momentos de pânico nos primeiros tempos em que Marcelo o revezou até sucumbir com o ar fresco de uma madrugada de Abril.

No Verão de 1970 fervilhavam boatos enquanto os jovens continuavam a morrer nas colónias e os portugueses aumentavam o ódio à ditadura e a coragem de afrontá-la, nas deserções da tropa ou enfrentando-a nas universidades, nas fábricas e nas ruas.

Em 27 de Julho desse ano a música fúnebre das emissões de rádio e de televisão soou aos ouvidos de muitos como um hino à liberdade. A notícia soube-se primeiro pelo ar feliz dos transeuntes – a informação ia passando de boca em boca – e pelos noticiários, depois. Morta a peçonha esboroar-se-ia o regime.

Na tertúlia do Café Nova York duvidou-se da veracidade da notícia. Ninguém tinha a confirmação de fontes estrangeiras e a credibilidade das portuguesas era igual à do regime.
O António Queirós e o Magalhães dispuseram-se a ir aos Jerónimos a confirmar o óbito. Ver para crer. Para o António era um acto de humor do antifascista de sempre. Para o Magalhães era a companhia do amigo e a decisão de quem sofria já de uma esquizofrenia que não mais deixou de apoquentá-lo. Só o testemunho deles faria fé para os amigos. Partiram, a pé, desde Entrecampos, tendo a peregrinação e o sacrifício um valor simbólico que valorizava o testemunho e o gesto picaresco.

Quando os dois entraram nos Jerónimos – confirmou o António –, havia mais polícias do que pessoas, apesar da multidão que exibia o último acto de servilismo, gratidão ou, sabe-se lá, de alívio. Integraram a fila, com o Magalhães, vestindo esmeradamente como sempre, e de preto, atrás do António. Foram avançando lentamente, ao compasso da fila, e logo reconheceram, junto à urna, Gabriel Monjane, o Gigante de Manjacaze, um amável negro moçambicano cuja desregulação hormonal o fizera crescer até aos 2,45 metros, com os horríveis padecimentos da acromegalia. Nessa altura ainda eles não podiam ver, nem adivinhavam, que junto do gigante se encontrava o anão de Arcozelo, seu companheiro num circo que os explorava como «o homem mais alto do mundo e o mais baixo». Nunca se soube quem foi o prócere do regime que abrilhantou o velório com o número de circo que sublinhava a tragicomédia da cerimónia fúnebre.

O António progredia na fila, calmamente, com semblante adequado à circunstância, mas evocando os camaradas mortos a seu lado, na Guiné, conhecidos que desertaram, compatriotas emigrados e amigos presos, tudo por causa do tirano que jazia a curta distância com honras de Estado e sem honra. Em contraste, o Magalhães impacientava-se. Perturbava-o a doença e não o acalmava a serenidade do António.

Lá chegaram, finalmente, junto do féretro. O gigante e o anão ali estavam integrando e acentuando o espectáculo pífio a que os destinaram. Cavalheiros de óculos escuros escrutinavam os passantes enquanto as fardas militares e as vestes talares coloriam a cerimónia. Umas carpideiras, por devoção ou encomenda, quem saberá dizê-lo, estacionadas junto ao cadáver, completavam o quadro mórbido.

Mal chegaram junto do caixão, o Magalhães, cansado da demora e à beira de um ataque de esquizofrenia, encara de frente os homens de óculos escuros, olha com tédio as carpideiras, baixa o queixo, sacode a cabeça com vigor e, acto contínuo, vários desses vigilantes precipitaram-se sobre as mulheres e afastaram-nas.

O António apanhou um susto enorme e pôs o ar compungido que a ocasião e o pânico lhe impuseram e só voltou a encarar o Magalhães depois de há muito terem deixado o mosteiro e os gorilas, cujos constrangimentos autoritários os levaram a obedecer prontamente ao primeiro gesto decidido de um doente psíquico, bem integrado, aliás, na esquizofrenia colectiva em que o regime mergulhara.

Carlos Esperança - Jornal do Fundão, hoje

Comentários

e-pá! disse…
CE:

Excelente crónica!
O solitário estertor do político, dito, providencial, nas catacumbas da ditadura.
E, simultaneamente, o raiar de muitas alvoradas (até 25 Abril 74) para o colectivo nacional.
odete pinto disse…
Não esperava, ao fim de tantos anos, ver (lendo) um quadro tão bem descrito.
Anónimo disse…
PORRA.... até estou com medo!!!

Este é o tipo de botas que o Sócrates usa nos seus momentos mais descontraidos... Sintomático não????
Excelente crónica Carlos, considero muito mais informativa a crónica anti-épica que os textos enublados e sem temperos. Muito antes de saber quem era Salazar e o que é a ICAR estranhava a conotações positivas que lhes davam, pessoas idosas da familia defendiam o bem que Salazar trouxe e os benefícios sociais que a ICAR dava, viveu com o pai preso pela PIDE, o filho nas guerras coloniais, experimentou a Espanha, debaixo de tiros e fome, chegou a idade avançada e defendia Salazar e a ICAR. O Mundo reservou-lhe uma vida de merda, pior de tudo, nunca a deixou aperceber-se do esterco que a rodeava... As pessoas podem lutar por um Mundo melhor, sem esperar que cadeiras façam o trabalho.

Cumprimentos.
Salvo das Águas disse…
Para ser lembrado como escritor, bastava-me ser o autor deste magnífico texto. Foi das coisas mais bem sucedidas que escreveste. Esta homenagem ao António Queiroz (com z)vai-lhe causar inveja, pois ninguém conseguia retratar tão bem um homem e uma época. Far-lhe-ei chegar o texto, pois de outro modo nunca o leria. Um abraço do que acreditava que os balões de ar comprimido eram...
Anónimo disse…
Salvo das Águas:

Que saudades dos tempos em que conspirávamos juntos.

E que gosto em encontrar-te por aqui.

Um grande abraço e a minha homenagem ao teu sentido do humor.

Obrigado.
ManuelB disse…
Divertida crónica, sem dúvida.

Mas também me apetecia rir com um relato do género acerca de Fidel ou Brejnev. Que risível vê-los, quase empalhados, a fingir que estavam bem -- e os respectivos partidos a fazer de conta que "no pasa nada".

Também me ri bastante, noutras eras, com as tiradas esquizóides do Vasco Gonçalves ou as toleimas do inteligente Otelo.

No Youtube também já há qualquer coisa divertida sobre Soares, a soltar inanidades por entre perdigotos.

Quando teremos a ventura de rir todos aqui com um texto sobre estes personagens?

Que pena Cunhal (que também nos tentou impor uma ditadura) não ter graça nenhuma e sentar-se sempre com muito cuidado, certamente por estar habituado a ver o que eram os "acidentes" que aconteciam aos que se lhe opunham.

Bela crónica -- mas há tanto material por aí para outras, que se estranha haver de se recuar 40 anos à procura, quando há mais recente.
Só é pena não haver mais velórios, de um Almeida Santos ou Alegre, por exemplo.

Muitos cumprimentos

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