A República dos Jornalistas

Na década de 90, em Itália, uma megaoperação judicial denominada mani pulite decapitou o establishment político revelando a corrupção endémica que se verificava em todas as esferas do poder político. Na altura cognominou-se a Itália como a "República dos Magistrados".

Por aqui, neste pequeno país à beira mar plantado, assiste-se a uma verdadeira República dos Jornalistas. Por cá, o jornalismo de tablóide confunde-se com o jornalismo sério e com a política de alcova.

Os meios de comunicação social e os "jornalistas" infiltram-se no sistema judicial obtendo dados confidenciais violando o segredo de justiça, o direito dos arguidos à privacidade e a eficiência da acção penal- e ficam impunes, graças a uma interpretação ultra-garantista (e quiçá conveniente) da liberdade de informação.

Num megaprocesso de pedofilia, practicamente toda a investigação foi infiltrada e dinamitada pelos media, tendo todos os arguidos visto a sua vida privada devassada e tornada de conhecimento público, sendo que os arguidos que foram ou vierem a ser ilibados nunca se libertarão do julgamento em praça pública alimentado pelos dados ilicitamente divulgados e empolados pelos media.

Uma criança desparece no Algarve e imediatamente os media violam o segredo de justiça, procurando primeiro linchar em praça pública um cidadão britânico que, tendo sido inicialmente constituído arguido, acabou por ser ilibado, tentando depois acusar os pais da criança, apresentando toda a espécie de conjecturas, interferindo na investigação, acabando por depois concluindo pelo assassinato de carácter de alguns intervenientes no processo. Num processo com contornos internacionais, a actuação dos media e a incompetência da investigação criminal criou sérios danos à reputação do país.

O presidente do STJ decide pela irrelevância e consequente destruição de escutas obtidas ilegalmente abrangendo conversas privadas em que intervem o PM- ora lá aparecem essas escutas e outros elementos confidenciais da investigação divulgadas pela comunicação social.

Num processo ligado à corrupção desportiva, até a cor das "frutas" a alegadamente fornecer a um árbitro e o calão empregue por alguns intervenientes foi devassado em praça pública.

Um "jornalista" escreve uma "crónica" baseada numa fonte anónima que lhe narrou num email uma alegada conversa privada, em que um dos interlocutores era o Primeiro Ministro, que se terá desenrolado num restaurante e que alegadamente era pouco terna para esse jornalista. Ora, o director do jornal, que escrupulosamente e em obediência aos tão esquecidos deveres deontológicos, decide não permitir a transformação do seu jornal num pasquim para vendettas privadas e lavagem de roupa suja- e subitamente temos um herói vitimizado pelo poder político e uma maquiavélica conspiração contra a democracia.

Um tribunal judicial decide favoravelmente uma providência cautelar proibindo a publicação de determinadas escutas, ilegalmente obtidas e em violação do segredo de justiça, e os responsáveis por essa publicação adoptam a táctica rodente dos caloteiros recalcitrantes procurando evadir-se à notificação dessa medida cautelar- e o referido periódico abrangido pela providência cautelar entra em circulação- em manifesto desrespeito pela autoridade do tribunal, órgão de soberania. Esses "jornalistas" nem sequer tiveram a hombridade de lutarem de peito aberto pela liberdade de imprensa que invocam- optaram pela porta dos fundos.

Fala-se muito em degradação do Estado de direito democrático em Portugal. E eu concordo- esse jornalismo sensacionalista, voyeur, "impreparado", alcoviteiro, sem escrúpulos, violador da lei e desrespeitador dos órgãos de soberania é uma ameaça para os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e contribui para a degradação da democracia. É inaceitável que se façam assassinatos de carácter e que se divulgue o que se passa na esfera privada das pessoas, em nome de um duvidoso "interesse público". É inaceitável que os media e os jornalistas possam obter ilegalmente dados confidenciais sob segredo de justiça, divulgá-los em violação da lei, desrespeitando as decisões dos tribunais, e ficarem impunes.

Este auto-de-fé em que os inquisidores se disfarçam de "jornalistas" tem que acabar. Obviamente que o tráfico de influências, a corrupção, e os casos criminais que mais choque social causam têm relevância mediática e há interesse público na sua repressão. Em Itália tal foi feito por magistrados, no respeito da lei e do direito, com espírito de abnegação e por vezes pagando o preço da própria vida, salvaguardando os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Mil vezes uma república de magistrados que uma república de "jornalistas".

O "interesse público" não é um conceito absoluto- raramente se deve justificar a violação da lei, do segredo de justiça e o desrespeito das decisões dos tribunais- esses sim existindo para proteger direitos, liberdades e garantias. Há que separar o trigo do joio e "jornalismo" de jornalismo- e acabar com a impunidade de jornalistas, funcionários judiciais, advogados, magistrados e juízes que contribuem para a violação do segredo de justiça.

Comentários

e-pá! disse…
Excelente post.

Ainda sobre a República o meu grande receio é estarmos a "escorregar" para uma "república das bananas"...
.
Um post que alia o conhecimento do direito à profundidade da ética.
avoema disse…
O texto está excelente. Parabéns para si, só tenho pena que o país se esteja a tornar numa bandalheira, onde o bom senso, o profissionalismo, a ética, estejam arredados das 1ªas páginas dos jornais, e os bons profissionais se escudem no silêncio para protegerem a sua integridade. Faz falta que neste momento esses, os íntegros, os éticamente correctos, tenham uma palavra a dizer e a digam para que o jornalismo faça sentido.

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