A incursão do Papa Bento XVI em Espanha

A reincidência das visitas a Espanha, desta vez na simples qualidade de peregrino, e a indisfarçável agenda política que move Bento XVI, só encontram paralelo no combate do clero católico, especialmente do seu episcopado, às leis que ampliaram a esfera da liberdade pessoal relativa ao matrimónio, divórcio e aborto.

Não está em causa o direito à livre circulação e às convicções do Papa, mas é intolerável a ingerência nos assuntos internos do País visitado, bem como afirmações incendiárias capazes de detonar confrontos.

A laicidade agressiva, de que o papa acusa Espanha, é uma impossibilidade conceptual já que a laicidade é neutra, ao contrário do clericalismo, a lembrar a crueldade dos Reis Católicos para com os judeus e a evangelização espanhola dos índios sul-americanos.

As canonizações em série de mártires da guerra civil espanhola foram uma provocação aos vencidos e a reabilitação de um dos mais sinistros ditadores mundiais, que gozou da total cumplicidade da Igreja católica. Foi a reabertura de feridas profundas num povo dilacerado pela violência e crueldade dos dois lados da barricada.

O silêncio e a cumplicidade perante os fuzilamentos que, durante anos, se seguiram à guerra civil de 1939/45, fizeram com que os espanhóis odiassem ou amassem em simultâneo o fascismo e a Igreja católica, uma divisão cujas feridas os dois últimos papas reabriram de forma perversa, sem qualquer sinal de arrependimento pelo apoio a Franco, às execuções, ao garrote e ao rapto de crianças de pais assassinados.

Ao comparar o anticlericalismo espanhol dos anos 30 com o secularismo actual, o Papa não se limitou a fazer uma provocação a um país soberano, incitou a Espanha, que goza de liberdade religiosa, a repetir a mais cruel e demente tragédia do século passado.

A raiva de Bento XVI contra o secularismo, a laicidade, o livre-pensamento e o ateísmo são obsessões que preenchem a sua agenda política. As visitas a Espanha não são actos cordiais, são ingerências nos assuntos internos de um país democrático.

O desprezo e a contestação a Bento XVI são um sobressalto cívico de uma Europa onde assomam de novo as ameaças de guerras religiosas e o papa católico se comporta como agitador.

Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

Sepúlveda disse…
Esquece que o Papa, apesar de chefe de um Estado, é o representante dos fiéis católicos, o que é transversal aos países onde os há.
E, se o povo em geral gostaria de ter um lobby que o defendesse contra medidas dos seus próprios governos, os cristãos católicos têm este lobby (não tão poderoso como até poderiam querer), o Papa, para defender princípios (materializados em leis) que, em geral, são os seus.
É claro que o que Bento defende não é o que todos os católicos defendem, mas também não são poucos e até coincide com o que defendem fiéis de outras religiões.
É razoável que alguém tenha algo contra os que não partilham das suas opiniões e vai sempre tentar persuadi-los. Toda a gente o faz. O Papa não é tão raivoso como o pinta.
E eu nem sou crente. Respeito a liberdade de todos e até do Papa.
Sepúlveda:

O que está em causa é a ingerência papal nos assuntos internos de Espanha durante as suas visitas.

Pode combater a legislação com que não concorda mas, no meu ponto de vista, fazê-lo numa visita a um país, contra esse mesmo país, é um acto intolerável que merecia a chamada do respectivo embaixador para pedir explicações.

O Papa não é inimputável.
e-pá! disse…
A Igreja católica espanhola, ao que julgo com a anuência papal, durante as discussões públicas de projectos de lei sobre a extensão de liberdades individuais [divórcio, aborto, etc.] teve toda a liberdade de expressar os seus pontos de vista, aliás, velhos dogmas sobejamente conhecidos e, semanalmente, repetidos em múltiplas homílias.
Uma vez consagrados pelas instituições democráticas esses projectos sobre liberdades individuais como leis, resta à Igreja respeitá-las. Resta, não, restaria, mas a teocracia do Vaticano não se rege pelas leis humanas.
A ICAR pretende "pairar" sobre os princípios democráticos que regem os Estados, evocando inspirações divinas.
Em Espanha, o tempo dos caudilhos "por la gracia de Dios" está enterrado. Sem grande contributo da Igreja espanhola, diga-se.

Mas a minha interrogação é a seguinte:
Imaginemos um Chefe de Estado em visita oficial ao Vaticano. Vamos supor que no discurso de saudação a Bento XVI o tal chefe de Estado resolvia apelar para que o papa e a sua Curia abandonassem a estrutura teocrática de Poder e se fizessem eleger, ou referendar, pelas diferentes comunidades católicas.
Cairia o Carmo e a Trindade...

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