Ao João Couto Braz


Não sei como deixei passar o 11.º aniversário da morte de um excelente amigo, republicano, laico e democrata. Foi no dia 5 de fevereiro. Se não tivesse datado a homenagem que então lhe prestei não acreditaria.

                                                 ***

João, tu não tinhas ainda idade para morrer. Ninguém tem, é certo. E tu não querias. Será que alguém quer? E mantiveste na adversidade um insuportável optimismo, uma fé inabalável em poderes continuar a respirar o ar com que teimavas em oxigenar o pulmão onde poisou o carcinoma.

Vê o que é o raio da vida. Depois duma viagem no interior dum ventre, rasgamo-lo e começamos com um grito que abre os pulmões ao ar. Nascemos frágeis, dependentes do seio que nos amamenta, do regaço que nos aconchega, da mão que nos guia os primeiros passos, sem consciência do amor que nos faz, da esperança que somos, da alegria que damos.

Depois soltamo-nos para repetir os gestos e os passos que outros deram antes de nós. A vida vai acontecendo ao acaso, tropeçando aqui, levantando-nos além, transportados pelo sonho, em busca da felicidade. Vamos fazendo as malhas com que tecemos o destino que nos cabe. Até que os fios se esgotam e ficamos com as agulhas vazias nas mãos inertes que se quedam num corpo inútil.
A vida passa tão depressa!

As células nascem, crescem, reproduzem-se e morrem, pequenos mundos em perpétua mutação. Mas há uma célula que, ao tornar-se maligna, não morre, reproduz-se sempre, imparável, assassina. Invade os ossos, procura as vísceras, atinge o cérebro e mata. Foi essa célula, esse pedaço de lúgubre imortalidade, que no seu desregramento perpétuo te derrotou.

De nada valeu, Amigo, a beberagem que o frade te preparou com o sacrifício dum cacto. Foram inúteis os exames complicados e as terapêuticas sacrificadoras.

A centelha de eternidade de que nos julgamos possuídos não passa dum fogo-fátuo da nossa esperança.

Partiste só, na viagem sem regresso, para sítio nenhum. Deixaste um rasto de saudade. Fizeram de madeira uma embalagem para o teu corpo como se fosses um presente a oferecer à terra. Cobriram-te a campa de flores para esconder os espinhos que te dilaceraram a partida.

Tu não querias partir, já o disse, mas, sobretudo, não devias. Tu não viste que o Miguel e a Ana não queriam? Não reparaste nos amigos que escondiam as lágrimas? – Não, já nem viste as pétalas de rosa vermelhas que a tua filha inconsolável te atirou sobre o caixão.

Claro que estamos tristes. Faltas-nos tu que eras a anfetamina da esperança que, dia a dia, nos anos velozmente percorridos, transmitias em doses maciças a imensa paixão de viver, a alegria contagiante, o entusiasmo com que percorrias a existência.

Não derrotaste a morte mas venceste o esquecimento. Os amigos, e somos muitos, havemos de lembrar-te sempre. O Porto que tu amavas, sem tiques provincianos, será a palavra-chave para navegar a memória da vida que naufragou na margem esquerda do Douro, junto à foz.

Um dia serás seiva da árvore que cresceu em frente da varanda da tua invalidez, uma molécula dum pássaro que voa por cima do betão que te cercou o apartamento ou que poisa piando a tua dor no alto das árvores que vias da tua cadeira de rodas. Mas hoje, e sempre, serás a saudade que nos acompanha, o eco de uma imensa vontade de viver que nos recorda a fragilidade da existência e a certeza do nada que também seremos.

Até um dia, João.

Coimbra, 05 de Fevereiro de 02

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Divagando sobre barretes e 'experiências'…

26 de agosto – efemérides