O Acordo ortográfico e os seus detratores

Os adversários da ortografia acordada já não serão vivos na assinatura do futuro tratado que necessariamente há de ocorrer na sã tentativa de unificar a língua que todos os dias assimila novos termos. O pragmatismo acaba sempre por vencer a vontade dos puristas e a argumentação dos eruditos.

Os adversários truculentos das atuais alterações não dizem o que pensam das anteriores e qual o critério para definir a transformação de um vocábulo corrente em arcaísmo.

Os zeladores da pureza idiomática lembram fidalgos arruinados a exibirem o brasão de família com as calças puídas na albarda de um burro, depois de lhes minguarem posses para ataviarem um cavalo puro-sangue.

Sendo a obsessão pelos costumes mais forte do que o pragmatismo, surpreende que a cruzada fique pelas últimas alterações e que os paladinos não tercem armas em defesa do português arcaico.

Concedo que é igualmente legítimo ser a favor ou contra qualquer AO, mas ninguém gostaria de regressar à ortografia anterior a 1911 e pala qual se bateram com inusitada violência, entre outros, Teixeira de Pascoais e Fernando Pessoa.

Pessoa escreveu no «Livro do Desassossego»:  «Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse».

E Teixeira de Pascoaes:
Na palavra lagryma, (...) a forma da y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com ilatino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.


Na Reforma Ortográfica de 1911, Gonçalves Viana, Carolina Michaëlis, Cândido de Figueiredo, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, Gonçalves Guimarães, Ribeiro de Vasconcelos, Júlio Gonçalves Moreira, José Joaquim Nunes e Borges Grainha optaram pela fonética, à semelhança da Itália e da Espanha, em oposição à França, que preserva a etimologia. Talvez esteja aí a razão do declínio da sua língua, como todos notamos.

Em 1911, foram violentas as reações, como o provam os exemplos acima apontados, e ainda mais violentos no Brasil, mas o tempo veio confirmar a utilidade da aproximação entre o português do Brasil e o de Portugal.

Há, todavia, razões válidas para se contestar o AO mas é de grande infelicidade recorrer à palavra cágado que não deixou de ser esdrúxula e de ter o acento agudo obrigatório.

Comentários

O que mais me irrita nos detratores do AO é a sua demagógica mania de dizer que estão a defender a língua portuguesa. Como se a ortografia tivesse alguma coisa a ver com a língua! Como se a língua portuguesa tivesse sofrido alguma coisa por se ter passado a grafar farmácia em vez de pharmacia, químico em vez de chimico ou sepulcro em vez de sepulchro!
m.a.g. disse…
Desculpar-me-á, mas este texto tresanda. E o Pessoa, se vivo fosse, ficar-lhe-ia muito grato se não o agrilhoasse ao "escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse» o abjecto AO.
Agostinho disse…
Seria ó(p)timo chegar-se a um acordo.
Nem pais nem detra(c)tores deste AO são senhores da razão toda.
Que mal poderá vir ao mundo se forem ado(p)tadas alterações benignas como no passado foi o caso de pharmácia?
Grave é a situação que está instalada quer em Portugal quer no Brasil em que nem no desacordo há acordo em que cada um faz como lhe aprover.
PAF disse…
Agostinho disse..."Grave é a situação que está instalada quer em Portugal quer no Brasil em que nem no desacordo há acordo em que cada um faz como lhe aprover"
Sabe Agostinho é que com toda essa balbúrdia o erro crasso de quem não sabe ler, nem escrever e muito menos pensar... passa despercebido!
Fernando Pessoa queria que se continuasse a escrever assim:

Graça Moura – hum aucthor distincto e intellectual archaico


Teophilo d’AssumpçãoThomaz era parocho e, em 1912, sem dar satisfacções sôbre a orthographia, prohibiu na sua parochia que a pronuncia do Portuguez modificasse a ethymologia na escripta, decisão de Carolina Michaëlis, Cândido de Figueiredo, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos e outros.

O parocho defendia o systema de orthographia da monarchia como o chimico defendia os manipulados da pharmacia. As phrases da rhetorica, fructo do seu talento, e as do theatro de que era aucthor, tinham a syntaxe d’esta lingua portugueza em que cantava os psalmos. Elle era hum intellectual distincto, não na arithemetica e na gimnastica, com instrucção para analysar a incoherencia e a differença da orthographia dos scelerados.

Teophilo odiava que o incommodassem com o novo systema de orthographia, abysmo que não approvava. Mandou collocar annuncios nos edificios da parochia a prohibir a nova orthographia e affligia-se com o que succedia nos novos livros.

Teophilo Thomaz foi um Vasco Graça Moura, fructo d’aquelle tempo. Perdia a phleugma e ficava exhausto nos combates mas, prompto, salvava o estylo e os diphthongos, às vezes com uma lagryma propria de quem se offendia com a expressão graphica das novas regras da Esthetica, que causavam damno à lingua portugueza.

Gostava de lyrios e melhorava a psychologia cantando psalmos. O extincto parocho não usou a assignatura archaica em paginas mal escriptas nem foi presidente do CCB.

Nota – Por decisão pessoal, o autor do texto não escreveu segundo a Reforma Ortográfica de 1911.

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