A PIDE também tinha gente estúpida

A Pide era sobretudo amoral e cruel. Para a sinistra polícia, a lei era, na afirmação do implacável inspetor Sachetti, bem perfumado e impecavelmente vestido, o que a polícia quisesse. Ninguém ilustrava melhor a prepotência do esbirro do que os juízes venais dos Tribunais Plenários, que olhavam para o lado quando os agentes agrediam os presos na própria sala de audiências, sem que um resto de dignidade assomasse por respeito à sua condição de magistrados. A pide não era só a canalha que integrava a polícia, era ainda a tralha de magistrados e informadores avençados, os bufos e rebufos, os legionários, os membros da União Nacional e os delatores ocasionais.

Mas não é da crueldade da Pide, do seu poder discricionário, das torturas aos presos ou medidas de segurança, aplicadas displicentemente pelos juízes dos Tribunais Plenários, e que podiam corresponder a prisão perpétua, que vou escrever.

Há facetas em que a burrice ombreava com a maldade. Eu não queria acreditar que, um cidadão hostil ao regime, e que habitualmente adquiria em França livros que a ditadura proibia, fosse, à chegada a Vilar Formoso, mandado sair do Sud Expresso, que circulava diariamente entre Lisboa e Hendaye, com ligação a Paris, para lhe espiolharem os livros que trazia e que, dessa vez, só trazia os clássicos franceses, Corneille, Racine e Molière. Um pide folheou os livros, certamente sem os saber traduzir e, enquanto devolvia, com ar de quem o tinha apanhado, os livros de Corneille e Molière, exultou ao confiscar-lhe Racine, sorrindo com ar inteligente, Racine…, Lenine…, Estaline…, então julgava que me enganava!

Também um livro sobre Betão Armado e Pré-Esforçado não terá fugido à fúria policial enquanto os alunos do Técnico (IST) o procuravam para se prepararem para o exame.

Há um, no entanto, de que vi as provas de apreensão, o auto assinado por um chefe de secção e um agente, no quiosque do café Nova York, ao fundo da Avenida dos Estados Unidos da América, e que o dono exibia com gozo aos clientes que conhecia. Tratou-se da apreensão do livro «Subversão, Sim, Evangelho, Não.: I - a verdade sobre o caso do padre Mário de Macieira da Lixa», escrito por um fascista, Amadeu C. de Vasconcelos, em azeda resposta ao livro escrito pelo advogado do padre Mário de Oliveira e cujo título era esclarecedor do conteúdo: «SUBVERSÃO OU EVANGELHO ?, de José da Silva», e o subtítulo, «O Processo do pároco da Maceira da Lixa no Tribunal Plenário do Porto». O auto de apreensão mencionava os 3 exemplares apreendidos para os quais, naquele café, dificilmente havia clientes.

Do Tarrafal a Caxias, da R. António Maria Cardoso a Peniche, viajava, às vezes, a mais crassa estupidez.

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