O vizinho da subcave esquerda (Crónica)

O Luís pode ter passado por mim, durante anos, sem eu me ter apercebido. Não recordo quando o conheci, talvez já tarde, depois de ter visto indivíduos de olhar esgazeado que me obrigavam a desviar da sua trajetória para não ser literalmente abalroado quando nos cruzávamos no hall do edifício onde resido.

Percorrem a entrada do prédio, vêm cegos, sabem de cor a distância, viram à esquerda e, dois passos depois, descem, absortos, os lances de escadas até à subcave onde o Luís faz a pequena traficância e um grande consumo de droga.

Habituei-me a eles, à substituição de alguns que desapareceram, no excesso da dose, por outros que vieram, sem que a clientela sofresse alterações quantitativas visíveis. Apenas dou conta da pressa com que avelhentam, da rapidez com que os dentes os abandonam e da ruína que tão breve os toca.

O Luís tem aquele apartamento que a mãe lhe comprou quando presumivelmente o filho lhe destruiu o casamento e a alegria. É lá que às vezes um cobertor de papa se incendeia e que o cheiro evita a asfixia ou a cremação enquanto um vizinho chama os bombeiros.

É aí que diariamente a mãe o procura para lhe trazer comida e o levar à distribuição da metadona, substância de mais fácil desmame, mas que os consumidores associam, sem deixarem as anteriores. Às vezes vem a irmã, tem de ser irmã, para tão amorosamente o apoiar na descida dos degraus, como bálsamo na descida quotidiana ao inferno.

A polícia conhece-o e despreza a bagatela do tráfico e do cultivo de plantas que vicejam na varanda. Há um limoeiro do quintal que o abastece. Depois do AVC, não o deixa a hemiplegia chegar a outros, esse dá limões para as necessidades.

Há dias vinha a arrastar a perna deficiente e, à sua volta, um cachorrinho cirandava. É uma cadelinha, disse-me a tartamudear com as lesões que lhe destroçaram a perna, um braço e a fala, quando passei por ele. Só tem um mês, o pai é lavrador e a mãe pastor alemão, olha o vizinho, vai com ele, e a cadelinha a menear-se, a mostrar o pelo negro e a aguardar o passo lento e os solavancos do dono.

Transposto o passadiço que separa o prédio da rua, abri a porta, entrei e segurei-a para evitar que o trinco a fechasse, conheço a dificuldade dele em abri-la. Nesse instante um automóvel passou por cima daquele cachorrinho e vi-o a contorcer-se, a ganir de forma lancinante, e o Luís, em aflição, a conseguir baixar-se para o aconchegar no colo, como um progenitor a quem tivessem atropelado o filho.

Doeu-me o espetáculo, a cadelinha em sofrimento, as vascas, o ganido estridente, aquela amargura do Luís e, deixando encostada a porta, arrepiado, galguei as escadas, desejoso de esquecer o estertor do bicho e a aflição do dono.

Três ou quatro dias depois, cruzei-me com o vizinho e, pela primeira vez, dirigi-me a ele, com ar de quem vai manifestar condolências, a perguntar pelo animal. Vi uns olhos brilhantes, antes de me dizer, já foi operada, correu tudo muito bem, custou bastante dinheiro mas isso não interessa, amanhã já tem alta e volta para casa. Naquele rosto, que se abriu num sorriso, havia uma felicidade imensa, a ansiedade contida de quem espera o ente querido que regressa do internamento de futuro incerto. A cadelinha, estropiada por um condutor que não parou, teve cuidados que só o afeto prodigaliza. Dei-lhe os parabéns. Sinceros. Num jovem precocemente destroçado, mora ainda o afeto por uma criatura que pode ser a última a acompanhá-lo numa vida que tão cedo deixou secar.

Ontem cruzámo-nos de novo. Virou-se para mim, comovido e feliz: amanhã já vai tirar os pontos.

Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

José Batista disse…
Um texto belo, sensível e comovente.
C'um escamartilhão, Barroco!
Chapeau!

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