O desabar de um arco que parecia assegurar ad eternum o triunfo…

Depois das eleições de 4 de Outubro, a Direita mostra-se inquieta. Pode estar prestes a cair um dos mitos que lhe assegurou, durante quase 40 anos, isto é, desde a instauração do regime da III República, nascido com o 25 de Abril, uma regular permanência no poder. 
O mito teve por base a fantasmagórica criação de um ‘arco’ partidário que foi apelidado como sendo o da ‘governação’, ou se quisermos, ‘do poder’. 
Deste modo, e paulatinamente, excluiu-se do processo democrático representativo um largo contingente de eleitores (nas últimas eleições cerca de 1 milhão) criando um 'instrumento político' capaz de garantir uma permanente rotatividade confinada ao Centro, sem comtemplar ou permitir veleidades de outras 'alternativas'.
 
Quem se afastasse desse ‘Centrão’ oculto, e aparentemente ‘tutelar’ da nossa democracia, ficava automaticamente excluído de participar na governação. É verdade que este iníquo processo foi ‘vendido’ como contendo no seu seio uma aparente ‘virtude’ e um ‘efeito indirecto’: seria a vacina contra extremismos (sejam reformistas, revolucionários, conservadores ou ditatoriais). Mas os resultados 'imunitários', por essa Europa fora, mostram que esta vacinação não se revela muito eficaz.

O ‘Centrão’ conquistou, então, aquilo a que se convencionou chamar a ‘classe média’ a verdadeira e decisória charneira dos resultados eleitorais que actuando pragmaticamente, isto é, perante as oscilações da qualidade da governação para defender interesses imediatos, foi permitindo uma ‘tranquila’ rotatividade até aos tempos mais recentes, onde a desilusão campeia. 
Só que a par desta evolução paroquial as condições materiais e objectivas sofreram profundas alterações (qualitativas) para os partidos colocados à Esquerda modificando relações de forças de origem centenária e, por exemplo, para a Esquerda hoje classificada sumariamente como de radical, o suporte humano remoto que condicionou a sua implantação e vitalidade, isto é, a grande massa de assalariados que vendem a sua força de trabalho, apresenta, hoje, condições laborais, de vida (sociais) e culturais muito diferentes das do início da era industrial. É preciso saber reconhecer e interpretar este trânsito histórico e adequar respostas.
 
O problema agravou-se com a crescente globalização económica (decorrente da queda do muro de Berlim) e criou focos de instabilidade no sistema. 
O controlo da economia pelo sector financeiro mundial veio aprofundar as contradições. Não existe, na prática, uma globalização latu sensu, subsidiária do conceito de ‘aldeia global’ dos anos 60 definida por McLuhan, mas o Mundo por todo o lado tem assistido a um assalto que alia os interesses financeiros e a vertiginosa evolução tecnológica para uma ‘globalização neoliberal’ que comanda transferências de recursos financeiros e tecnológicos, isto é, mexeu nos mecanismos de distribuição da riqueza, destruindo os equilíbrios que duravam desde a recessão americana no início do século XX. 
Esta alteração qualitativa ameaça frontalmente a dita ‘classe média’ criada à sombra dos ‘gloriosos 30 anos’ de expansão económica e de uma sociedade de ‘bem-estar’ social, decorrentes do fim da II Guerra Mundial. 

O assalto promovido pelo modelo neoliberal a partir dos anos 80 com a ‘reaganização’ e ‘tathcherização’ da política ocidental, promovendo a ‘financeirização’ da política, a cavalo de um suporte sem rosto, sem regulação e sem ética (os ditos ‘mercados’) atingiu profundamente a dita ‘classe média’ de tal modo que ameaça a sua existência.

A Esquerda não pode continuar a ficar acantonada nos seus velhos bastiões e, sem retomar a velha concepção de uma progressiva proletarização dessa classe, tentar conquistar terreno no campo das relações de trabalho em permanente mutação e volatilização de consciência (de classe). 
Uma justa redistribuição da riqueza e a defesa do Estado Social, bandeiras tradicionais da Esquerda, têm sido, paulatinamente, colonizadas e adulteradas pela Direita que com as suas ‘crises cíclicas’ (aparentemente rectificadoras e redentoras do capitalismo) e, ainda, com pregões sócio moralistas sobre comportamentos e estilos de vida (‘viver acima das possibilidades’, etc.) pretendendo passar incólume pelos pingos da chuva.  

Criou-se, portanto, um jogo viciado e vicioso. Até porque as duas forças de Direita diluíram artificialmente (e oportunisticamente) as suas divergências políticas e ideológicas e, daqui para a frente, aparecerão sempre coligadas porque, neste esquema táctico, beneficiam do sistema eleitoral vigente (método de Hondt). Esta uma falácia que se continuar a ser alimentada acabará por afastar (excluir) toda a Esquerda (incluindo o PS) do ‘arco da governação’, passando a ‘alternância’ a ser um mero (e)feito retórico.

Esta grosseira viciação da representatividade teria de acabar um dia. As conversações em curso entre os partidos de Esquerda só surpreenderam a Direita porque esta tem por hábito considerar os outros como uns estúpidos cultivadores de atávicos facciosismos. A Esquerda não pode aceitar este estatuto de menoridade cívica e as conversações são a 'resposta natural’ para quem pretende adequar as convicções ideológicas (sem abdicar das diferenças) ao momento político actual, mostrando-se disponível e capaz de influir na governação do País, dando sentido prático e funcional à representatividade que lhe foi delegada pelos eleitores. Fazer o necessário caminho partindo da doutrina (que é fundamental), passando pela permanente adaptação ideológica (às realidades dos momentos), dirimindo contradições (internas) e chegando à praxis. Esta contempla uma variedade de passos (uns à frente e outros atrás) para chegar a um racional escalonamento de objectivos e prioridades. A vitalidade (e a criatividade) da Esquerda passa por aí.
Existe, contudo, uma barreira que tem sido uma das bandeiras e um eficaz instrumento do neoliberalismo: manter intocável o status quo.
Essa barreira contaminou transversalmente a classe média (ainda fiel a chavões vagos como 'segurança' e 'estabilidade') e, hoje, condiciona qualquer tipo mudança quer para a Direita e nos sectores mais à direita do PS (área fronteira deste espectro). E perante o apelo ao imobilismo, à imutabilidade dos compromissos, devemos tentar compreender que por alguma razão a Direita é eminentemente conservadora.

É esta a transformação histórica que estamos a viver e que foi detonada pelos resultados eleitorais mas que está latente desde o advento do neoliberalismo (com especial incidência desde o início da década de 80). 

Quem não percebe esta mutação em curso e dedica o seu tempo a anunciar golpes palacianos, perversões democráticas e catástrofes iminentes perdeu o sentido evolutivo (progressista) da História. E as consequências dessa perda – essas sim – serão ‘naturalmente’ catastróficas.

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