Marielle Franco


 
A execução sumária de alguém que decidiu bater-se pela liberdade é um crime civilizacional e um acto repugnante. Todavia, o repúdio fontal não deve esconder as razões subjacentes à selvageria que o assassínio encerra.
Marielle Franco é descrita pelos mídia como uma ‘favelada’. Associada a este rótulo cola-se uma lutadora pela vida, pela liberdade e pelo fim da violência.
As favelas são um antro onde a liberdade não existe. São um espaço – humanamente deteriorado - onde a pobreza campeia e a lei é a barbárie. Quem nasce, cresce e vive neste ambiente ganha – por instinto - uma couraça protetora e vontade para lutar pela sobrevivência. A vivência diária entre fogos cruzados – da criminalidade e das ‘forças da ordem’ - é um tirocínio de vida insubstituível mas, também, uma lotaria quando a expectativas. O amanhã, propriamente, não existe. Trata-se de uma expressão concentrada (agrupada) das profundas desigualdades económicas e sociais que continua a gerar incompreensíveis silêncios e a criar tolerâncias à volta de uma miserável rotina, onde já nada surpreende.
A recente intervenção militar de Brasília nas favelas (decidida por forças políticas ultraconservadoras de fachada liberal), em clara violação do contexto cívico (criou-se um surdo e cirurgicamente localizado ‘estado de sítio’) mostra o agudizar da situação de confronto institucional.
As favelas não são para regenerar ou substituir por espaços urbanos de outro tipo, isto é, socialmente aceitáveis e humanamente adequados. As favelas, para os golpistas que se instalaram em Brasília, devem ser ‘ocupadas’ por ‘manu militar’, para impor determinada ‘Ordem’ à força, à revelia que qualquer caminho de ‘Progresso’, já que outras narrativas circunstanciais chocam a cada momento com a realidade. Hoje, conhecemos bem o labor e a violência marginal dos ‘Esquadrões da Morte’ para acreditar em histórias da carochinha.
O populismo insano e reacionário trava silenciosamente nas favelas uma batalha de uma violência inaudita. Esta deriva securitária envolve muitos políticos brasileiros cujo primordial objetivo, no momento, é salvar-se de processos de corrupção.
Marielle, além de favelada (nasceu na Favela da Maré), era – como muitos dos favelados – negra. Ora, mesmo no País que gosta de apresentar-se como sendo uma miscelânea étnica, como é o Brasil, existem vários gradientes desse caldo de cultura em suspensão e nem todos são sobrenadantes. Três séculos de escravidão não se apagam de supetão (nem por uma ‘Lei Áurea’) e a resolução dos estigmas políticos que sustentaram essa ignomínia, isto é, uma independência descolonizadora, estão longe de ter encontrado  soluções sociais justas e não discriminatórias. Basta constatar que o ‘regime dos coronéis do cacau’ vigorou até há bem pouco tempo.
Todavia, a grande marca do racismo é o empurrar – de modo abrupto ou sub-reptício - de grupos populacionais específicos (etnias) ou então de estratos sociais específicos (os pobres) para as margens da condição humana. Esse ‘empurrão’ gera (sempre) violência.
A criação do conceito de ‘mulato’ ou do ‘mestiço’ não foi como às vezes é referido o grande feito luso em ‘Terras de Santa Cruz’ em termos de convívio e relações humanas (integração) mas uma sofisticada expressão de racismo. Não se referem - embora existam - gradientes entre os ditos ‘brancos’. Tudo foi sendo definido (estrutural e institucionalmente) pelos poderes pós-coloniais, sempre influenciados por padrões reacionários e obsoletos e, portanto, incapazes de se libertarem das marcas e processos aviltantes do colonialismo. A segregação (política, económica e social) substituiu a escravatura.
Os espaços sociais (como as favelas) tinham sido primariamente bloqueados (discriminados) foram depois subtilmente condicionados e, finalmente, inventou-se (ainda o poder) uma narrativa assistencialista que tem perdurado. Todos os indícios apontam no sentido de que o estigma rácico perdura: Entre cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras (dados publicados por IPEA em 2017).
Marielle, como é notório, foi um produto destas difíceis condições. Ao, legitimamente, revoltar-se contra estas ignomínias foi sumariamente executada. Esta a nova ‘Ordem e Progresso’ impulsionada pelos golpistas de Direita que recentemente assaltaram Brasília.
Finalmente, Marielle não se acomodou nem cruzou os braços perante este descalabro. O enquadramento social onde nasceu e viveu atirou-a para a atividade cívica e política. Foi uma das autarcas mais votadas no Rio de Janeiro sob a sigla coligada ‘Mudar é possível’ (os brasileiros dizem ‘chapa’) que congregou o PSOL e o PCB.
A sua opção política à Esquerda não é despicienda na análise deste brutal assassínio. O PSOL originou-se numa cisão, à Esquerda, de destacados militantes do PT, devido a profundas divergências ideológicas sobre a Reforma da Previdência (2003) que, na altura, suscitou um terramoto político-partidário e, hoje, sabemos que um suposto pragmatismo do ex-presidente Lula só passou no Congresso à custa do escândalo conhecido por ‘mensalão’, isto é, à custa de uma pornográfica compra de votos.
Dessa histórica origem até à presente denúncia e combate ao militarismo incentivado por Temer e que se instalou no Rio de Janeiro para construir uma contraditória ‘pax bellicus’, à revelia das soluções político-sociais, cada vez mais inadiáveis, mereceu, por parte de Marielle Franco, uma permanente denúncia e um combate cívico decidido e coerente.
Por outro lado, isto é, do outro lado da barricada, está a política de Temer onde a força (a repressão) é o instrumento de eleição para dirimir problemas sociais. Temer aproxima-se, deste modo, da cartilha de Jair Bolsonaro, um protofascista adepto e arreigado defensor da ditadura militar e putativo candidato à Presidência brasileira nas próximas eleições.
Marielle Franco entra, pela defesa dos ideais e pelo sacrifício da sua vida à mão de (insaciáveis) carrascos, na galeria dos(as) brasileiros(as) que lutam abnegadamente pelo desenvolvimento e libertação de um povo das grilhetas ancestrais. Marielle continua, no presente, a saga de Chico Mendes, também barbaramente executado em 1988, em circunstâncias algo parecidas.
A pergunta que perpassa é sempre a mesma: quantas mais mortes serão necessárias para por cobro a esta situação?

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